CONTRIBUIÇÃO TÉCNICO-CIENTÍFICA À CONSULTA PÚBLICA N º 8/2018
Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD)
“Bomba de infusão de insulina para tratamento de segunda linha de pacientes com diabetes mellitus tipo 1”
Este documento é a contribuição técnico-científica à Consulta Pública nº 08 da CONITEC (Bomba de infusão de insulina para tratamento de segunda linha de pacientes com diabetes mellitus tipo 1), da Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD). Este documento foi elaborado partindo do pressuposto de que, o tratamento de primeira linha de pacientes com diabetes mellitus tipo 1 (DM1) contempla o uso de insulinas humanas NPH e Regular que será substituída, em breve, por um análogo de insulina de ação ultrarrápida (lispro, asparte ou glulisina), com a expectativa de que seja complementada futuramente, com o análogo de insulina de longa ação.
A terapia com sistema de infusão contínua de insulina (SICI) ou bomba de insulina (BI) é uma modalidade de administração de insulina consolidada, segura e eficaz para o tratamento do DM, especialmente do DM1. Consiste em um dispositivo externo que contém um reservatório de insulina conectado a um cateter plástico, que é inserido no tecido subcutâneo do paciente através de uma cânula. Este sistema permite administração contínua de insulina no tecido subcutâneo ao longo das 24 horas, com alta precisão, o que possibilita um controle rigoroso das glicemias, redução da ocorrência de hipoglicemias, particularmente as graves.
Alguns modelos de BI apresentam sistema integrado de monitorização contínua da glicose, permitindo a visualização do valor da glicose em tempo real e possibilitando ajustes imediatos na dose de insulina, evitando hipoglicemias e hiperglicemias. Mais recentemente, foram lançados sistemas integrados com suspensão automática em hipoglicemia ou na previsibilidade de hipoglicemia, que podem reduzir ainda mais estes eventos. Além disso, a BI possui recursos especiais, como basal temporário, que diminui risco de hipoglicemia durante atividade física ou bolus especiais para alimentos ricos em gordura e proteínas, melhorando a glicemia pós-prandial e favorecendo um controle metabólico melhor.
O DM1 é uma doença crônica caracterizada pela destruição autoimune das células beta pancreáticas, produtoras de insulina, que resulta em uma deficiência absoluta de insulina e necessidade de insulinoterapia exógena por toda a vida. O objetivo do tratamento é a reposição da insulina de modo similar à secreção fisiológica de insulina endógena de um indivíduo saudável. Para tanto, a terapia preconizada é a basal-bolus, caracterizada por dois componentes: um “basal”, constante e em pequena quantidade, cobrindo 24 horas; e um componente “bolus”, liberado na hora da refeição para cobrir a ingestão dos alimentos e permitir a correção da glicemia naquele momento. Esta terapia pode ser realizada tanto por meio de múltiplas injeções de insulina (MDI) ou com BI.
Na maioria dos pacientes com boa educação em diabetes, o tratamento com MDI no esquema basal-bolus resulta em controle glicêmico adequado. Entretanto, é importante entender que nem todas as insulinas utilizadas para este esquema de múltiplas injeções são iguais. As insulinas fornecidas pelos SUS, como as insulinas humanas NPH e Regular, apesar de apresentarem um bom perfil quanto à pureza e capacidade de redução da glicemia, apresentam pico de ação que acarreta risco de hipoglicemia, caracterizando uma farmacocinética muito diferente da secreção fisiológica de insulina das pessoas que não têm a doença.
A insulina NPH é habitualmente utilizada em doses fracionadas nas 24 horas para funcionar como insulina basal e a insulina Regular aplicada às refeições. Há um risco importante de hipoglicemias graves e noturnas decorrentes do perfil farmacocinético da insulina humana Regular que é minimizado, de modo significativo, quando esta insulina é substituída por um análogo de insulina de ação ultrarrápida. Naqueles pacientes, onde há persistência de hipoglicemia com a terapia basal–bolus com insulina humana NPH associada à insulina análoga de ação ultrarrápida, é recomendável a utilização de análogos de insulina para ambos os componentes, basal e bolus. Neste esquema terapêutico, há uma combinação de um análogo de insulina de longa duração (glargina, detemir ou degludeca) com um análogo de insulina de ação ultrarrápida (lispro, asparte ou glulisina). O análogo de insulina de longa duração apresenta um perfil mais plano (sem picos), maior duração (permite uma dose de insulina basal diária) e menor variabilidade comparada à insulina humana NPH. O objetivo desta insulina é obter o controle da glicemia entre as refeições e no período de jejum. Por outro lado, os análogos de insulina de ação ultrarrápida, como o nome diz, apresentam uma ação mais rápida e duração mais curta que a insulina humana Regular, sendo administrada imediatamente antes de todas as refeições (bolus), de acordo com a alimentação e a correção da glicemia, atingindo um melhor controle da glicemia pós-prandial.
Muitos pacientes podem alcançar um controle glicêmico adequado com menor risco de hipoglicemia, quando estas insulinas são utilizadas corretamente, mas não em todos os casos. Verifica-se que, pacientes com DM1, apresentam uma heterogeneidade na resposta aos diferentes esquemas de insulinoterapia. Por está razão, está indicada a evolução da insulinoterapia por etapas, de modo que, pacientes que apresentam importante instabilidade do controle glicêmico e hipoglicemias frequentes devam ter sua terapia alterada das insulinas humanas para terapia basal–bolus com os análogos de insulina. Naqueles pacientes já em uso da combinação de análogos e otimização das doses utilizadas as hipoglicemias graves e noturnas persistam, a utilização da BI passa a ser necessária e indispensável.
A terapia com SICI , tem crescido em todo o mundo, registrando um aumento de 0,6% a 1,3% em 1995 e 44% a 47% entre 2012 e 2016 em países da Europa e EUA1,2. Concomitante ao uso crescente de BI, observou-se também uma diminuição da frequência da hipoglicemia grave.3,4
Um grupo muito suscetível à hipoglicemia são as crianças. As crianças não são apenas menores em tamanho, mas apresentam diferenças fisiológicas com os adultos, e um grupo delas merece um destaque especial: aquelas com menos de seis anos de idade. Deve-se ressaltar que as doses de insulina dependem da idade, do peso e do estadiamento da puberdade. Neste grupo de pacientes, observa-se alta sensibilidade à insulina, e necessidade de doses de insulina tão pequenas quanto 0,025U no basal e 0,1U de bolus. Estas doses não podem ser administradas com seringas ou canetas de insulina o que explica os achados comuns nesta faixa etária de grandes oscilações glicêmicas, ora com hiperglicemias, ora com hipoglicemias após correção.
A hipoglicemia pode exercer efeitos deletérios no cérebro imaturo e em desenvolvimento das crianças pequenas, com prejuízos futuros na performance cognitiva destes pacientes5. Além disso, hipoglicemias frequentes predispõem às hipoglicemias assintomáticas e despercebidas, consequentemente resultando em um risco maior de hipoglicemia grave6. Portanto, neste grupo de pacientes a BI deve ser o tratamento de primeira linha, não sendo possível o controle metabólico adequado com MDI.
Outros grupos de pacientes merecem atenção especial são as gestantes, os pacientes com gastroparesia resultante de neuropatia autonômica diabética e aqueles que apresentam hiperglicemias de jejum significativas devido ao “fenômeno do alvorecer”. Sabe-se que o DM1 na gestação aumenta o risco materno de pré-eclampsia, distócias de parto e risco de macrossomia e hipoglicemia no recém-nascido (RN). A necessidade insulínica nesta condição varia do risco aumentado de hipoglicemia no primeiro trimestre a um período de resistência à insulina, requerendo altas doses de insulina no último trimestre, o que dificulta o controle metabólico tão necessário para uma gravidez segura que resulte em um RN saudável. Neste sentido, a BI permite maior flexibilidade, frequentes ajustes com potencial melhora do controle glicêmico no período gestacional. Os estudos disponíveis que avaliam gestante com DM1 demonstram resultados conflitantes, em geral por serem estudos pequenos, com grupos heterogêneos (diferem no tempo de doença, na presença de complicações e no controle glicêmico), que começam o uso de BI tardiamente. Poucos avaliam a evolução da necessidade insulínica, as taxas de carboidratos e sensibilidade ao longo da gestação. Um achado comum nas pacientes que utilizam a terapia com BI durante a gestação é a necessidade de menos insulina para obter o mesmo controle glicêmico das pacientes que utilizam MDI. Estudos mais recentes, com BI com alça fechada, observam que estas gestantes conseguem permanecer mais tempo na faixa de normoglicemia7.
A gastroparesia é o atraso do esvaziamento gástrico na ausência de obstrução mecânica decorrente do comprometimento de fibras nervosas autonômicas. Os pacientes com DM1 apresentam um risco 30 vezes maior de apresentar esta complicação neuropática e o risco acumulativo em 10 anos atinge 5%. Muitos estudos apontam para uma correlação com tempo de DM, mau controle metabólico e complicações microvasculares. É importante observar que a gastroparesia resulta em piora do controle metabólico e risco aumentado de hipoglicemia devido ao desequilibro entre trânsito intestinal, absorção dos alimentos e ação da insulina. A BI apresenta características como programar o bolus com liberação mais tardia da insulina que ajuda o paciente a melhorar a glicemia pós prandial e diminuir a incidência de hipoglicemia8.
Outra situação de difícil controle é o fenômeno do amanhecer, em que a glicemia se mantém ou há discreta queda na primeira parte da madrugada e seguida por uma elevação fisiológica da glicemia na segunda metade da madrugada, resultando em valores glicêmicos altos em jejum. Nesta condição, a terapia com MDI com análogos de insulina não consegue alcançar pleno controle, visto que o ajuste da dose do análogo de insulina para melhorar a glicemia ao acordar aumenta o risco de hipoglicemia na primeira parte da madrugada. Com a BI, é possível modular a liberação da insulina basal de acordo com as glicemias da madrugada e do jejum.
Estudos que comparavam o controle glicêmico, com a terapia com BI e esquema MDI com insulina NPH, mostraram redução de 0,5 a 0,6% da hemoglobina glicada (HbA1c), enquanto estudos recentes observaram queda menor. No entanto, a avaliação da terapia insulínica nas últimas duas décadas em crianças e adolescentes europeias, apontam que o crescimento significativo da terapia basal-bolus com análogo de insulina e BI (85% dos pacientes) foi associado à redução significativa da HbA1c elevada, sobretudo os níveis de maior risco de complicações (> 9% e >10%)9.
Em outro estudo recente, com mais de 30.000 jovens europeus com DM1, o uso de BI foi associado a menor frequência de hipoglicemia grave e coma, especialmente em crianças em idade escolar; e menor frequência de cetoacidose, especialmente nos adolescentes, comparado ao esquema MDI. Estes resultados favorecem a terapia com BI, que demonstrou frequência menor de complicação aguda e HbA1c mais baixa, traduzindo um melhor controle metabólico10.
A avaliação de custo-eficácia de BI, através de uma revisão sistemática comparando BI vs MDI, demonstrou que a terapia com BI apresentou um índice de custo efetivo médio (95% IC) de € 30 862 (17 997-43 727), US$ 40 143 (23 409-56 876) por ano ajustado de qualidade de vida (QALY) obtido. A BI foi associada à melhoria da expectativa de vida e da expectativa de vida ajustada pela qualidade (0.4-1.1 QALYs em adultos), impulsionada pela menor HbA1c e menor frequência de eventos hipoglicêmicos versus MDI11.
Outro estudo, realizado na Alemanha, através de um modelo desenvolvido para avaliar o impacto orçamentário e análise da decisão, simulou um cenário de migração de MDI para BI em 20% da população, randomicamente selecionada de pacientes DM1 descompensados em seu controle glicêmico em uso de MDI. O objetivo foi determinar as principais compensações de eventos médicos (hipoglicemia grave e complicações evitáveis) e seus custos em um período de quatro anos pela introdução da terapia com BI. Neste cenário de migração, 47.864 menos casos de hipoglicemia grave e 5.543 menos casos de complicações micro e macrovasculares seriam evitados, gerando compensação de custos de € 183.085.281. Desse total, 92% corresponderam aos casos de hipoglicemia grave evitados. Comparando com um impacto orçamentário previsto (aumento de custo) de 83%, considerando apenas os custos de tratamento, o impacto total no cenário de migração representou apenas um aumento de 24,5% nos custos (uma redução de 58,5 pontos percentuais; um fator de 3.4)12.
Apesar de não ter sido realizada avaliação adequada, por meio de revisão sistemática e avaliação econômica, a SBD entende a necessidade de identificar as situações em que a BI é indispensável ao tratamento, levando-se também em conta as frequentes medidas judiciais para a obtenção do SICI pelo Sistema Único de Saúde (SUS). As indicações abaixo são recomendadas pela SBD:
A. Tratamento de primeira linha de pacientes com DM 113
- A partir do diagnóstico em neonatos, lactentes e crianças menores de seis anos (necessidade de microdoses de insulina)
B. Tratamento de segunda linha de pacientes com DM113
- Hipoglicemias graves e noturnas frequentes apesar do uso de esquema com MDI (insulina humana NPH e regular, insulina NPH e análogos de insulina de ação ultrarrápida, ou análogos de insulina ultrarrápida e de longa ação e).
- Hipoglicemia assintomáticas e ou despercebida (disautonomia): falta de percepção de sintomatologia clínica pela ausência de resposta adrenérgica.
C. Situações especiais em pacientes com DM1 13
- C1. Mulheres com DM1 gestantes ou planejando gestação, que apresentem controle glicêmico inadequado ou hipoglicemias sem aviso, apesar da boa adesão à terapia com MDI
- C2. Paciente com DM1 com gastroparesia.
- C3. Paciente apresentando fenômeno do amanhecer significativo.
Por fim, incluem-se as indicações da terapia com BI, segundo as Diretrizes da Sociedade Brasileira de Diabetes 2017-2018 (Quadros 1 e 2) e as recomendações finais, de acordo com o nível de evidência (Quadro 3).
Indicações Médicas para SICI (BI)13-16
Referências
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FONTE:http://www.diabetes.org.br/publico/ultimas/1617-contribuicao-tecnico-cientifica-a-consulta-publica-n-8-2018